RIO E BRASÍLIA - O reajuste que a Petrobras pretende aplicar aos contratos para fornecimento de gás a distribuidores tem potencial de afetar a economia como um todo: da indústria que depende do produto ao motorista que usa o gás natural veicular (GNV), chegando até o consumidor final.
A estatal propôs aumentos que significam, na prática, dobrar ou até quadruplicar o preço da molécula a partir de 1º de janeiro de 2022. Estimativa da Abegás (associação das distribuidoras) indica que 50% a 80% do volume de gás contratado pelas empresas vão vencer no fim do ano. Rio e Espírito Santo, por exemplo, ficariam 100% “descontratados” caso não cheguem a um entendimento, mas a situação varia em cada estado.
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À primeira vista, pode parecer apenas um debate setorial, entre a Petrobras e seus clientes, mas especialistas indicam que o gás tem efeito multiplicador. Ele é usado por indústrias como as de vidro, cerâmica, siderurgia e petroquímica, entre muitas outras.
É também a fonte de abastecimento das usinas termelétricas, que foram acionadas este ano por muito mais tempo que o habitual para garantir a energia durante o período seco, que vai até o fim de novembro.
E é alternativa para quem busca fugir da escalada de preço da gasolina, um dos vilões da inflação, que acumula alta de 10,67% em 12 meses até outubro. Um aumento no preço do gás poderia bater até na conta de luz mais adiante, em razão dos custos das usinas termelétricas.
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Segundo Adrianno Lorenzon, gerente de Gás Natural da Abrace, associação que reúne os grandes consumidores, o aumento no preço da molécula a partir de janeiro vai afetar a todos e pode inviabilizar fábricas no país.
— Muitas fábricas podem ficar inviáveis economicamente por causa do aumento do preço do gás. E a indústria vai repassar isso para tudo, desde o frango congelado até a lata de cerveja e o preço do carro — listou Lorenzon. — E isso ocorre em um momento em que a inflação já chega a dois dígitos.
O presidente do Conselho de Administração da Associação Nacional dos Fabricantes de Cerâmica para Revestimentos, Louças Sanitárias e Congêneres (Anfacer), Benjamin Ferreira Neto, afirma que o gás corresponde a 30% do custo do setor. Para ele, o reajuste afetará a competitividade e pode gerar demissões.
— O Brasil já tem um dos preços do gás mais caros no mundo e essa intenção de reajustar só tira a competitividade da indústria de cerâmica. Será impossível não repassar os preços ao consumidor — afirmou, destacando que a atividade vinha se recuperando das perdas na pandemia, mas em outubro foi afetada pela alta do custo do gás e pela perda do poder de compra da população com a inflação.
O debate expõe a concentração do mercado brasileiro, no qual a Petrobras opera mais de 90% da produção de petróleo e gás no Brasil. A estatal responde por cerca de 80% das importações de GNL (em estado líquido). E deixa para trás a promessa de um “choque de energia barata” feita pelo ministro da Economia, Paulo Guedes.
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Nos bastidores, a avaliação do governo é que o mercado ainda é refém da Petrobras e que não há competição. Ao mesmo tempo, técnicos ponderam que a abertura do mercado é um processo demorado, porque o setor de gás natural é complexo e demanda investimentos elevados.
Marcio Balthazar, da consultoria NatGas, diz que o mercado “fica de mãos atadas” pois os gasodutos são ocupados pela Petrobras e o preço do GNL é influenciado pela estatal:
— É preciso criar o caminho para a concorrência.
Alta de 500% no GNL
As negociações começaram em setembro e haviam sido interrompidas em outubro. Assim como outras commodities, o preço do gás disparou este ano com o aumento da demanda na esteira da retomada da atividade econômica com o avanço da vacinação.
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Pelos novos termos apresentados pela Petrobras, ela quer tomar como referência o preço no mercado internacional. Ele saltou de US$ 5 por milhão de BTU (unidade internacional do gás), no fim de 2020, para os atuais US$ 27 por milhão de BTU.
Para as empresas, o preço do gás já subiu cerca de 50% no ano, com base no modelo atual, de reajuste trimestral. Em geral, as distribuidoras de gás fazem reajuste anual, corrigido pelo IGP-M, e trimestral, de acordo com o insumo fornecido pela Petrobras. Além disso, de cinco em cinco anos há a revisão tarifária. No caso da indústria, o reajuste é sempre a cada três meses.
Durante as negociações, a estatal afirmou que o gás da produção dos campos de petróleo e o do gasoduto Brasil-Bolívia estão voltados para a demanda das termelétricas, acionadas a pleno vapor por causa da crise hídrica, das unidades de fertilizantes e dos contratos de distribuidoras.
Para a própria Petrobras, segundo fontes, o cenário é difícil por não conseguir repassar para a energia elétrica o aumento do custo do gás em suas próprias termelétricas.
Metade do que é consumido hoje é produzido pela Petrobras e outras empresas e o restante é importado através do gasoduto Brasil-Bolívia e via GNL (em estado líquido).
Segundo Marcelo Mendonça, diretor de Estratégia e Mercado da Abegás, a estatal apresentou quatro formas de contrato: de seis meses, um ano, dois anos e quatro anos. O preço médio passaria dos atuais US$ 9 por milhão de BTU para US$ 36 por milhão de BTU e, no caso de um contrato de quatro anos, o reajuste seria menor pois a estatal financiaria parte do preço, pago em parcelas.
— A conta não fecha. O mercado não vai conseguir absorver esse patamar de preços. Estamos encaminhando representação ao Cade (órgão de defesa da concorrência) e uma carta ao MME (Ministério de Minas e Energia) para que essa questão seja tratada pois estamos a 50 dias de ficar sem contratos — disse Mendonça.
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A Petrobras disse que “as negociações estão em andamento”. Segundo a estatal, a tratativa vale para distribuidoras que optaram por contratos de curto prazo nos últimos anos. Ela diz que busca dar mais previsibilidade aos preços e que a oferta terá de ser complementada com importação de GNL, que subiu 500% este ano.
Por que o gás ficou mais caro?
Retomada de atividades com aumento da vacinação
Durante a pandemia, com atividade econômica fraca, o consumo de energia e a demanda por commodities caíram. Investimentos foram suspensos. Com a retomada das atividades após o avanço da vacinação, a demanda cresceu rapidamente.
Rússia é crucial para suprir oferta do produto na Europa
Na Europa, os estoques caíram na pandemia. A maior procura dos europeus ajudou na disparada dos preços. A Rússia é um player importante, e a expectativa é que ela aumente a oferta do produto, mas não o suficiente para normalizar a situação.
Alta do preço do barril de petróleo contribui
O aumento do preço do petróleo, que tem renovado recordes nos últimos meses e está sendo negociado acima de US$ 82, também afeta o gás. Isso acontece porque grande parte do gás natural é extraído associado ao petróleo.
Transição energética em curso globalmente
A busca por uma matriz energética mais limpa também ajuda a aumentar a demanda. O gás natural emite menos CO2 que outras fontes, e países como a China recorrem a ele para reduzir emissões no abastecimento de termelétricas.
Sem choque de energia barata no mercado brasileiro
A mudança de cenário pressiona a Petrobras, que passou a importar mais gás para atender distribuidores e termelétricas. O reajuste tende a afetar o processo de abertura do mercado e a promessa do governo de criar um choque de energia barata.
Reajuste do gás natural pela Petrobras vai afetar da indústria ao motorista. Entenda por que o combustível está em alta - Jornal O Globo
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